“Mas nada disso vale a fala, porque a história de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida.”

João Guimarães Rosa, Sagarana.

Abre o livro de contos Sagarana, de Guimarães Rosa, a história do “Burrinho Pedrês”, que narra o dia em que Sete-de-Ouros, um burrinho já muito velho e que havia servido exemplarmente a seus vários donos, é escalado para ajudar no transporte do gado. Porém, na travessia de um rio, todos os cavalos, o gado e os vaqueiros morreram, exceto dois deles: Franconlin, que estava montado em Sete-de-Ouros, e Badu, que agarrou-se ao rabo do burrinho.

Ao longo de sua vida, Sete-de-Ouros havia sido comprado, doado, trocado, revendido, roubado, picado por uma cobra e teve diferentes nomes. O burrinho, mesmo já idoso e por essa razão escanteado pelos fazendeiros, foi o responsável pelas únicas vidas que se salvaram da tragédia. No recorte daquele dia, Sete-de-Ouros havia sido o herói. Porém, como compartilha o narrador do conto, o animal sempre foi “tão bom, como outro não existiu e nem pode haver igual”. Ou seja, o resumo daquele dia fazia jus à sua história como um todo.

O texto, com a beleza estética da escrita de Guimarães Rosa, nos leva à reflexão: o resumo de um dia de nossas vidas revela a nossa história? Um recorte de 24h pode ser entendido como sumário de nossa existência? À princípio, tendemos a rejeitar essa tese. Afinal, nossa vida é muito longa para ser resumida em um dia. Porém, meditando sobre a afirmação do escritor, podemos extrair muitas considerações.

Em um intervalo de 24h, quanto tempo, e por consequência quantas oportunidades desperdiçamos? Esse desperdício acontece apenas neste dia específico ou é algo repetitivo? Ao longo deste período, ao que nós dedicamos nossa atenção? Conseguimos pôr em prática aquilo que acreditamos ser importante? Por exemplo, temos um equilíbrio entre o cuidado com o nosso corpo, aprendizado, trabalho, sonhos, família, amigos, caridade, ou o que quer tenhamos em nossa lista de prioridades? Neste dia analisado, nossos valores e crenças se mostram palpáveis e visíveis?

Pelo o quê e para quem dedicamos o nosso amor? Aliás, demonstramos amor ou passamos o dia no “modo automático” sem sentir realmente o que fazemos? E isso é assim todos os dias? Algo nos irrita e faz com que percamos o controle? Isso é algo particular deste dia ou é recorrente? Passamos por algum problema? Ele foi factual ou decorrente de uma coisa maior que nunca enfrentamos e temos ‘empurrado com a barriga’? Nossos pensamentos foram positivos ao longo destas 24h? Ou houve negatividade neste período? Isso aconteceu devido a uma situação pontual ou a um problema que se repete?

Talvez seja radical afirmar que a história de um homem possa ser dada pelo resumo de um dia em sua vida, no entanto, uma análise cuidadosa de 24h pode nos revelar muito. Tanto as coisas boas que realizamos em um dia, quanto os desafios e desequilíbrios pelos quais passamos tendem a ser partes de virtudes e falhas mais amplas em nossa vida, revelando características nossas positivas, assim como os desafios que precisamos enfrentar.

Guimarães Rosa abre a sua frase com a expressão “Mas nada disso vale a fala”, pois pensamentos, discursos e intenções são importantes, porém, apenas as ações importam verdadeiramente na construção do nosso caminho diário. E, para valer, estas ações têm que ser genuínas e postas em prática cotidianamente. Como diz outra frase exemplar, esta de São Francisco de Assis: “Tome cuidado com sua vida, talvez ela seja o único evangelho que as pessoas leiam”.